segunda-feira, 27 de outubro de 2014

Quem fala

Meu poema
é um tumulto, um alarido:
basta apurar o ouvido
(Ferreira Gullar)


Quem fala, quando eu falo? De quantos “eus” a gente é feito? E, dentro desses “eus”, qual deles é o verdadeiro, se é que existe?
Sinto que nunca ando sozinho. Às vezes, me distraio e parece que sou eu mesmo que está andando, calmamente, pelas ruas de Florianópolis. Sem me dar conta, saio do carro, atravesso ruas e ando pelas calçadas estreitas, pensando em quase nada. Entretanto, sem que eu perceba, de repente, me vejo agindo e/ou pensando com um jeitão que me faz lembrar alguém. Não se trata de imitação ou de falta de personalidade. É outra coisa. Outra. É uma inevitável presença de outrem em mim. Parece algo meio espiritual, mas não é isso que quero dizer; revelo sensação.
Tive um avô que era meio artista: tocava gaita de boca, cantava, dançava, contava histórias, anedotas. Quando íamos a sua casa, ele nos convidava a sentar à mesa e nos divertia, enquanto comíamos com um sorriso no rosto. Seus cabelos fortes para quem possui idade avançada dialogavam com o olhar de um azul vivo. Era descendente de eslavos.
Do meu bisavô – sogro do avô acima citado, aliás – sei apenas de relatos da minha mãe, que se lembra dele com alguns lapsos, provocados pelo tempo. Curiosa subjetividade! Quando a gente não recorda muito bem de algo ou de alguém completa as lacunas com a nossa imaginação. Imagine, então, as camadas pelas quais a figura do bisavô passa até chegar à imagem que dele construí?! Sei que chegou a lecionar alemão e lia neste idioma. Adorava ler periódicos, vindos da Germânia, aos quais tinhas acesso através de um conhecido que recebia e repassava.
Quando eu tinha poucos anos, um tio meu faleceu. Ele praticamente não está em minhas memórias. Mais uma vez preciso apelar para descrições de outrem para formular minha imagem. Descobri que era alto, loiro e tinha os dentes ralos. Além disso, uma peculiaridade: gostava de fazer brincadeiras com os outros, mas não aceitava brincadeiras dos outros.
Pronto, aí estou eu. Sou a antropofagia do Oswald. Há algo de original, primordial em mim? Consigo ser um pouco “eu” ou sou totalmente “nós”? Bom, ainda não toco gaita nem leio em alemão.

sábado, 16 de agosto de 2014

O cemitério da colina

Esses dias, vi uma mulher lavando um túmulo. Lembrei-me de do Machado de Assis: túmulo limpo com frequência mantém a morte recente (parafraseei). É um pensamento do Conselheiro Aires, quando de sua ida ao cemitério, com a irmã, Rita. Configura-se uma limpeza melancólica, então. Mas, e quando não há limpeza nenhuma? A morte seria uma ferida cicatrizada? Ou apenas uma forma diferente de melancolia, tendo em vista que a sujeira concederia  às lápides tons de desleixo?
Para a sociedade contemporânea ocidental em que vivo, seria moralmente mais “bonito” que os entes não mais presentes tenham sua última morada sempre renovada, pois o gesto demonstra o carinho que os vivos ainda possuem por seus mortos. O túmulo é um aporte, um estímulo para que a memória continue falando de quem faleceu.
Por isso, a segunda categoria que citei pode ser vista com maus olhos. Quem não preserva as sepulturas dos seus, não se lembra mais deles.
E o que dizer de um cemitério inteiro sem visitas? Conheço um. Há anos ele foi descoberto (em todos os sentidos), à beira de uma estrada, no alto de uma colina. Foram fazer limpeza de terreno, para obras ligadas à rodovia e lá estava ele, escondido entre arbustos e grandes árvores, pequeno. Virou notícia de jornal. Órgãos públicos e privados o limparam e revitalizaram.
Como passo por lá com certa frequência, percebo que o mato está tomando conta de novo, o que mostra que o cemitério da colina (escolhi este nome, que tal?) continuou sozinho. Talvez, como ele está desse jeito, sabe-se lá desde quando, os vivos, ou já esqueceram, ou fizeram um pacto silencioso de deixa-lo lá, quieto. Mas é importante que ninguém quebre o acordo, porque se um levar flores ou fazer lavação, ficará feio para os outros, displicentes. Em grandes cemitérios, cidades do além, tal prática seria inviável: difícil agregar muita gente em uma combinação.
Sou meio machadiano, acho. Penso que o local do último repouso pode reter marcas do tempo, indicando uma espécie de velhice natural, que em vida todos temos. O cemitério da colina estava nesse caminho, mas tomou uma injeção de botox.

quinta-feira, 24 de abril de 2014

Instantes

Sempre me interessou captar o momento.
Irrita-me o caráter fugidio das coisas. Sempre me irritou, na verdade. Desejo o instante. Almejo a fração de segundo.
Entendo que a fotografia “eterniza momentos”, como se diz. Mas não gosto de fotografias: elas raramente são naturais e tentam esconder aquilo que quase nunca somos. Quando se posa para fotos, é comum vermos pessoas em situação de antítese, meio que tentando demonstrar algo que o olhar contradiz. Sei quem é Sebastião Salgado, reconheço a arte fotográfica, mas ela não satisfaz o anseio ao qual me refiro.
Quero o sussurro um pouco anterior ao clímax do prazer, a lágrima rápida e inevitável que a cena de um filme antigo faz brotar, o sorriso que a criança deixa escapar, as luzes fugazes de um show de rock, o prazer do vinho e da massa, a alegria levemente (ou não) embriagada da reunião de amigos, o olhar vago e amendoado após leitura de Machado, o brilho na troca de olhares com meu amor.
Tudo se repete? Não! E não tenho paciência para esperar.
Consigo, inclusive, sentir nostalgia do sublime momento está acontecendo: é saudade do presente. Pensando bem, isso pode até dividir espaço com o que tanto prezo. Mas se eu conseguisse congelar o instante, tudo seria mais fácil.
Existe a prática da máscara mortuária, que é guardar uma recordação de alguém que já se encontra inerte. Eu não poderia usá-la como metáfora, pois, como se vê, não quero congelar aquilo que congelado está. Outro tipo de gesso, no entanto, seria de grande valia. Um gesso que moldasse as circunstâncias que, para mim, não deveriam passar.
Porém, ninguém vive de paliativos. Ademais, o molde é sempre uma representação, um simulacro do real. Percebe-se que tudo é uma questão de tempo, e com ele não se mexe, não é? Talvez. “O tempo é um ponto de vista do relógio”, disse Mario Quintana.

quarta-feira, 5 de março de 2014

"A última ceia"

Esta imagem está aqui por causa do texto abaixo. Ou será o contrário?

A anedota

Na “Última ceia”, de Leonardo da Vinci, logo após Jesus anunciar que um de seus 12 apóstolos iria traí-lo, as reações foram intensas e bastante diversas.
Falava-se muito com as bocas – algumas cheias – e as mãos, bem ao estilo italiano, apesar de tudo acontecer no Oriente. Expressões como “Eu nunca faria isso, senhor!”, ou “Quem seria capaz disso?”, ou “O quê?” ou “Preciso de mais uma taça de vinho!”, podiam ser ouvidas a certa distância. Obviamente, todos quiseram saber quem poderia fazer tal coisa contra o mestre. Este, então, lançou um desafio a seus inquietos seguidores:
- Vou lhes contar uma anedota, e aquele que não conseguir controlar o riso, será meu pusilânime.
Tomé perguntou o que significava “pusilânime”, mas nenhum colega se animou a responder. Se bem que não adiantaria, pois Tomé, provavelmente, desconfiaria da resposta.
De qualquer maneia, Jesus iniciou:
- Um homem embriagado estava sentado no jardim, quando vê um funeral ao fundo da rua e pensa: “Vou ver o que é aquilo”. Quando chegou, a viúva gritava:
- Ai querido, tu vais para onde não há comida, vinho, móveis, nada!
E o bêbado disse:
- Espere aí! Para a minha casa ele não vai!
Apesar de não ser uma das melhores histórias que o grande líder contava, um de seus seguidores riu demais: Judas. Jesus se decepcionou com a descoberta, claro, mas ficou também preocupado, pois Tomé e João pareciam não terem achado graça por não terem entendido a piada. Como o senhor podia confiar seu legado a pessoas tão lentas? E olha eu já era a segunda de Tomé naquela noite!

terça-feira, 4 de março de 2014

Borboletas

O que Ana queria mesmo era ter uma borboleta.
A vida, para ela era muito simples: a pequena casa da avó, o córrego com peixes brilhantes, a vaca leiteira.
A avó tinha um filho, que morava com ela, pois o marido tinha se perdido.
Poucas coisas eles tinham, mas parece que quanto menos se tem, mais leve é a vida. Ana não tinha brinquedos. Ela possuía, no entanto, o vento, árvores, insetos coloridos. Porém, tudo isso era dela e, ao mesmo, tempo do mundo. Sua avó conseguia ainda lhe fazer, em uma velha máquina de costura, sacos de pano, onde Ana entrava e escorregava pelos morros. Seu tio lhe trazia frutas das plantações. Só que ela começou a desejar algo que fosse seu, de verdade.
O casulo foi se formando, no jardim, atrás da casinha, onde todas as manhãs, borboletas se reuniam, no seu silêncio multicor.
E, de repente, Ana se viu encantada, em meio a tanta delicadeza; sentiu uma profunda identificação com o modo de viver das borboletas do jardim. “Bem que eu queria ter uma pra mim”, ela disse.
Então, todas as manhãs, ela acordava, tomava seu café-com-leite e ia correndo se encontrar com suas amigas. Às vezes, Ana não se continha e se aproximava dos canteiros, misturando-se às roseiras. As borboletas consideravam Ana, uma flor, e pousavam em seus braços. Era uma festa! “Por que não ter uma borboleta?”, ela pensou. Seria tão bom! Quando fosse o momento da revoada, uma permaneceria. A menina e sua companheira alada trocariam ficariam à beira do riacho, ensinariam coisas uma para outra, trocariam confidências, voariam.
Chegou o dia! Com todo o cuidado, Ana fechou uma borboleta em suas mãos, fazendo com que as duas entrassem no casulo de onde havia saído.