Descobri que Arnaldo Antunes escreveu a letra de “Beija Eu”, a qual foi projetada na voz de Marisa Monte. O ex-titã se inspirou na fala de seu filho, que, sabiamente, fugia da norma culta para expressar a vontade de ser bem quisto. Me parece difícil pedir algo tão primitivamente subjetivo, preocupando-se com regras. Somente as crianças são capazes de tamanha espontaneidade, pois sua sinceridade é por demais profunda e só consegue enxergar e demonstrar a essência das coisas.
Minha filha, até alguns anos atrás, usava o “mim” em várias frases. Perguntava, por exemplo, “Tu ajuda em mim?” e “Tu brinca com mim?”. Penso que não pode haver nada mais essencial e sublime do que isso. Além do mais, é de grande sonoridade. Experimente comparar “Tu brinca com mim?” com “Tu brinca comigo?”. O “comigo” é muito mais seco do que o “mim”, cuja nasalização faz propagar e ecoar o som.
Mas a musicalidade não é o mais importante nos barbarismos da minha filha. O trunfo maior da sua subversão gramatical é a forma como ela consegue ser plural em significados. Perguntar “Tu ajuda em mim?” é como querer saber se o interlocutor pode, não só ajudar você, mas também entrar na sua alma e comungar dos seus anseios/receios. O “mim” possibilita um passeio pelos sentidos, oblíquos ou não.
Alguns adultos infantis, não suportando ouvir as colocações fora de ordem das crianças, corrigem implacavelmente. É o mesmo que acontece com alunos que são podados por professores quando escrevem, por exemplo, uma composição. Os pequenos, assim como na fala, escrevem com uma linearidade que lhes é própria. As ideias parecem não fazer sentido. E não fazem mesmo, para quem está habituado a um mundo cartesianamente chato.
Eu amo “mim”. E amo as crianças também. Pena que a licença poética delas dura tão pouco: rapidamente (des) aprendem o correto. É como ouvir a música “Beija Eu” em meio a uma aula de Reforma Ortográfica. Um lampejo de liberdade ante o mundo de regras que estão em volta.