quinta-feira, 30 de junho de 2011

Mim

Descobri que Arnaldo Antunes escreveu a letra de “Beija Eu”, a qual foi projetada na voz de Marisa Monte. O ex-titã se inspirou na fala de seu filho, que, sabiamente, fugia da norma culta para expressar a vontade de ser bem quisto. Me parece difícil pedir algo tão primitivamente subjetivo, preocupando-se com regras. Somente as crianças são capazes de tamanha espontaneidade, pois sua sinceridade é por demais profunda e só consegue enxergar e demonstrar a essência das coisas.
Minha filha, até alguns anos atrás, usava o “mim” em várias frases. Perguntava, por exemplo, “Tu ajuda em mim?” e “Tu brinca com mim?”. Penso que não pode haver nada mais essencial e sublime do que isso. Além do mais, é de grande sonoridade. Experimente comparar “Tu brinca com mim?” com “Tu brinca comigo?”. O “comigo” é muito mais seco do que o “mim”, cuja nasalização faz propagar e ecoar o som.
Mas a musicalidade não é o mais importante nos barbarismos da minha filha. O trunfo maior da sua subversão gramatical é a forma como ela consegue ser plural em significados. Perguntar “Tu ajuda em mim?” é como querer saber se o interlocutor pode, não só ajudar você, mas também entrar na sua alma e comungar dos seus anseios/receios. O “mim” possibilita um passeio pelos sentidos, oblíquos ou não.
Alguns adultos infantis, não suportando ouvir as colocações fora de ordem das crianças, corrigem implacavelmente. É o mesmo que acontece com alunos que são podados por professores quando escrevem, por exemplo, uma composição. Os pequenos, assim como na fala, escrevem com uma linearidade que lhes é própria. As ideias parecem não fazer sentido. E não fazem mesmo, para quem está habituado a um mundo cartesianamente chato.
Eu amo “mim”. E amo as crianças também. Pena que a licença poética delas dura tão pouco: rapidamente (des) aprendem o correto. É como ouvir a música “Beija Eu” em meio a uma aula de Reforma Ortográfica. Um lampejo de liberdade ante o mundo de regras que estão em volta.

quarta-feira, 22 de junho de 2011

Midnight in Paris



Confesso que li uma crítica do filme antes de assisti-lo e era positiva, gentil, comparando-o, inclusive, com The Purple Rose of Cairo, um dos meus filmes preferidos, aliás. Mas não gosto de tudo o que o Woody Allen faz: às vezes, acho-o tagarela demais. Cinema é imagem. Para o Midnight in Paris fui com boa impressão e bom pressentimento. Acho que no momento certo, também. Só sei que tudo parece ter convergido para que eu não perdesse um segundo da trama. Apreciei deveras!
Imagem e palavra dialogam perfeitamente na película; conduzem o espectador/leitor por um cenário espetacular (o que de mais iluminado a “cidade luz” tem) e por falas na medida certa. Teria o autor/diretor encontrado a fórmula? Seria ele como o bom vinho francês, curtido e saboroso?
É preciso muita sensibilidade para alcançar a alma de um lugar. Apesar de Paris não ser exatamente uma cidade difícil de se gostar, Woody enxerga nuances que estão expressas no personagem principal: o sonhador Gil Spender, um aspirante a romancista que pretende largar a, segundo ele, futilidade da vida americana para viver (em) Paris. Ele passa a acreditar que lá seu texto pode melhorar, visto que tantos artistas importantes já passaram por aquele palco e, para o mundo, nunca passaram.
Gil, então, à meia noite, diariamente (ou noturnamente?), embarca em uma viagem fantástica para a época das pessoas que sempre admirou. Convive com Picasso, Hemingway, T. S. Eliot e muitos outros. O personagem vai, assim, fundo no desejo de mudança. A evasão, tão ordinária na vida nossa, sempre tão insuficiente...
Ao sair do cinema, tive que encarar a realidade prosaica. Entretanto, quando olhei no relógio, tive um sobressalto: meia-noite. O que me esperava? Um bom vinho chileno, Edith Piaf e esse texto.