segunda-feira, 26 de outubro de 2015

Abraço apartado

“Um abraço!”, disse, ao se despedir. Mas nem olhou para mim direito. Preferiria que não dissesse nada e me abraçasse. 

segunda-feira, 23 de março de 2015

Acordo

No galho da árvore artificial, o passarinho finge assobiar.

sábado, 14 de março de 2015

Carro

Minha não-história com carros começou cedo. Nas brincadeiras com meus primos, eu não achava a mínima graça em brincar de carrinho. Meu lance era outro: encantava-me a tríada pipa, futebol e bolinhas de gude, com eventuais incursões em trilhas de bicicleta e outras aventuras.
Cresci e tive carro, sim. Aderi a uma cultura retrógrada brasileira, que empurra goela abaixo a obrigação de todo homem andar motorizado. Em verdade, admito a importância da possibilidade de me locomover rapidamente de um local ao outro, sem precisar depender de transporte público – uma forma de mobilidade ainda deficitária e, muitas vezes, defasada –, em muitos momentos da minha vida. Nos tempos de universidade, quando era preciso estudar e trabalhar em vários lugares ao mesmo tempo, o bom mesmo teria sido o teletransporte, mas o carro já resolveu.
Ainda hoje, me locomovo em quatro rodas. O pensamento, entretanto, caminha, usa metrô, trem, ônibus. Sempre sonho com o dia em que não estarei mais à mercê de engarrafamentos, acidentes, irritações/brigas/xingamentos, mecânicos, borracheiros, flanelinhas, impostos, eletricistas, sinais de trânsito, estacionamentos, seguradoras, concessionárias. Uma vez li um texto que dizia que, quando compramos um carro todo mundo sai ganhando, menos quem compra. Pode até parecer pouco consciente pensar assim, tendo em vista que o mercado precisa de consumidores. Por outro lado, o que o consumo tem trazido ao mundo?
Além de tudo, não acho chique dirigir. Não é à toa que os ricos contratam motoristas. Sem contar que é uma atividade limitante, em diversos sentidos. Quando se anda, é possível enxergar as coisas em volta, seguir a borboleta amarela do Rubem Braga. Já devorei livros inteiros ao balanço enjoadinho do ônibus. Tudo isso é mais lento? Pode ser. E se eu disser que já levei oito horas para fazer 100 quilômetros? Prefiro a outra lentidão. Uma que não incomoda, porque os sentimentos estão em coisas outras.
Lembro de vezes em que o ponto final de um texto veio depois do ponto final do ônibus: voltei andando, para não precisar voltar o texto.

sábado, 31 de janeiro de 2015

Descanso

Paulo César está preso no final de semana.
A semana passou rápido demais. Procurou aproveitar cada momento como se fosse o último de sua vida. Utilizou o horário comercial o melhor que pode: visitou clientes, preencheu documentos, fechou novos contratos e, mesmo nos minutos restantes dos dias, fez ligações importantíssimas.
Como era bom terminar o dia com a sensação de ter produzido para a empresa. Paulo César era representante comercial de uma empresa de embutidos. Normalmente era sua foto que estava no mural de funcionário do mês. Quando não, ele ficava visivelmente incomodado e batalhava para que no próximo mês seu belo sorriso fosse estampado no lugar mais alto do pavilhão. E para garantir que não seria outro o contemplado com a homenagem, fazia ainda um lobby junto ao chefe.
E quando encerrava o expediente, ia para casa e dava uma esticadinha, adiantava o serviço do dia seguinte. Uma vez ligou para uma padaria às dez da noite querendo saber se eles estavam precisando da linguiça toscana ou calabresa.
- Boa noite! Quem?
- Gostaria de falar com quem?
- É da padaria?
- Sim, mas já fechou há duas horas.
- É sobre o tipo de linguiça que vocês querem pegar amanhã.
Desligaram.
Teve também a vez do barzinho.
- Alô! – disse Paulo César.
Do outro lado da linha estava um bêbado. Era Raimundo, que frequentava o local praticamente todos os dias e, por isso, já se achava tão íntimo do proprietário que até se metia a recepcionar clientes e atender telefonemas. Claro que só começava a fazer isso depois de algumas cervejas. Isso ia até que Seu Moraes o conduzia para fora e conversava um pouco com ele, que chorava suas mágoas ao único “amigo” que tinha.
- Aaalloou! – respondeu Raimundo.
“Nossa, que animação!”, pensou Paulo César. Como era bom falar com alguém tão bem disposto!
- Queria falar sobre aperitivos.
- Eeeu também! Pedi uma porção há uma hora e ninguém me serviu nada ainda! – respondeu Raimundo, que começou a frase empolgado e terminou muito irritado. Seu Moraes disse que o pedido já estava pronto e bem em frente ao Raimundo. Quando este viu, desligou o telefone e foi comer.
O problema de Paulo César era a família. Quando chegava em casa depois de um dia de dedicação e queria ampliar um pouco seus afazeres, lá vinha mulher e filhos querendo atenção. Era lâmpada para trocar, lição de casa para fazer, enfim, atenção para dar. Muitas vezes, ele chegava bem de mansinho e corria para o quarto, passando a chave bem rapidinho para não dar tempo de ninguém abrir a porta. Quando ele conseguia isso, era a glória! Sentava-se à escrivaninha e lá se iam mais algumas horas de produção. Quando achava que era hora de dormir, deixava a esposa entrar, afinal a cama era dela também.
Agora, tinha chegado a sexta-feira. Era sempre o mesmo drama. Ele não trabalhava, nem no sábado, nem no domingo. Ou seja, era obrigado a esperar a segunda-feira para voltar às atividades. Via-se obrigado a passear no parque, ir ao cinema, tomar um sorvete, ficar de bobeira, visitar familiares, almoçar na casa da sogra ou da mãe. Que dificuldade! Às vezes alguém lhe perguntava como estavam os negócios. Pronto, a salvação, a evasão, um oásis em meio a tanta inutilidade. Com avidez, Paulo César relatava tudo ao seu interlocutor, revelando até detalhes que, com certeza só interessam a ele. Geralmente, que puxava conversa com ele, se arrependia. Por isso, estava ficando cada vez mais raro: quem já sabia, evitava entrar no assunto. Como a família não era muito grande e os amigos escassos, tornava-se cada vez mais raro as oportunidades de ele discorrer sobre o que gostava.
Com a chegada do domingo à tarde, tudo melhora para Paulo César. Já dá até para fazer planejamentos. Ter uma ideia, ligar para o clube de idosos da cidade e tirar uma dúvida sobre uma venda que será feita lá nos próximos dias. A coordenadora atende, ao mesmo tempo que acompanha as pedras do bingo que estão sendo cantadas.
- Oi! – atende Dona Hilda.
- Boa noite! Aqui é o Paulo César da Frios & Frios. Gostaria de confirmar o número de pacotes de presunto que entregarei na quarta para a senhora.
- Vinte e cinco – reponde solícita a Dona Hilda.
- Bingo! – gritou Seu Etelvino, confuso.
Até explicar para ele a situação, deu tempo de todo mundo fazer um lanche. Sem presunto, ainda.


segunda-feira, 27 de outubro de 2014

Quem fala

Meu poema
é um tumulto, um alarido:
basta apurar o ouvido
(Ferreira Gullar)


Quem fala, quando eu falo? De quantos “eus” a gente é feito? E, dentro desses “eus”, qual deles é o verdadeiro, se é que existe?
Sinto que nunca ando sozinho. Às vezes, me distraio e parece que sou eu mesmo que está andando, calmamente, pelas ruas de Florianópolis. Sem me dar conta, saio do carro, atravesso ruas e ando pelas calçadas estreitas, pensando em quase nada. Entretanto, sem que eu perceba, de repente, me vejo agindo e/ou pensando com um jeitão que me faz lembrar alguém. Não se trata de imitação ou de falta de personalidade. É outra coisa. Outra. É uma inevitável presença de outrem em mim. Parece algo meio espiritual, mas não é isso que quero dizer; revelo sensação.
Tive um avô que era meio artista: tocava gaita de boca, cantava, dançava, contava histórias, anedotas. Quando íamos a sua casa, ele nos convidava a sentar à mesa e nos divertia, enquanto comíamos com um sorriso no rosto. Seus cabelos fortes para quem possui idade avançada dialogavam com o olhar de um azul vivo. Era descendente de eslavos.
Do meu bisavô – sogro do avô acima citado, aliás – sei apenas de relatos da minha mãe, que se lembra dele com alguns lapsos, provocados pelo tempo. Curiosa subjetividade! Quando a gente não recorda muito bem de algo ou de alguém completa as lacunas com a nossa imaginação. Imagine, então, as camadas pelas quais a figura do bisavô passa até chegar à imagem que dele construí?! Sei que chegou a lecionar alemão e lia neste idioma. Adorava ler periódicos, vindos da Germânia, aos quais tinhas acesso através de um conhecido que recebia e repassava.
Quando eu tinha poucos anos, um tio meu faleceu. Ele praticamente não está em minhas memórias. Mais uma vez preciso apelar para descrições de outrem para formular minha imagem. Descobri que era alto, loiro e tinha os dentes ralos. Além disso, uma peculiaridade: gostava de fazer brincadeiras com os outros, mas não aceitava brincadeiras dos outros.
Pronto, aí estou eu. Sou a antropofagia do Oswald. Há algo de original, primordial em mim? Consigo ser um pouco “eu” ou sou totalmente “nós”? Bom, ainda não toco gaita nem leio em alemão.

sábado, 16 de agosto de 2014

O cemitério da colina

Esses dias, vi uma mulher lavando um túmulo. Lembrei-me de do Machado de Assis: túmulo limpo com frequência mantém a morte recente (parafraseei). É um pensamento do Conselheiro Aires, quando de sua ida ao cemitério, com a irmã, Rita. Configura-se uma limpeza melancólica, então. Mas, e quando não há limpeza nenhuma? A morte seria uma ferida cicatrizada? Ou apenas uma forma diferente de melancolia, tendo em vista que a sujeira concederia  às lápides tons de desleixo?
Para a sociedade contemporânea ocidental em que vivo, seria moralmente mais “bonito” que os entes não mais presentes tenham sua última morada sempre renovada, pois o gesto demonstra o carinho que os vivos ainda possuem por seus mortos. O túmulo é um aporte, um estímulo para que a memória continue falando de quem faleceu.
Por isso, a segunda categoria que citei pode ser vista com maus olhos. Quem não preserva as sepulturas dos seus, não se lembra mais deles.
E o que dizer de um cemitério inteiro sem visitas? Conheço um. Há anos ele foi descoberto (em todos os sentidos), à beira de uma estrada, no alto de uma colina. Foram fazer limpeza de terreno, para obras ligadas à rodovia e lá estava ele, escondido entre arbustos e grandes árvores, pequeno. Virou notícia de jornal. Órgãos públicos e privados o limparam e revitalizaram.
Como passo por lá com certa frequência, percebo que o mato está tomando conta de novo, o que mostra que o cemitério da colina (escolhi este nome, que tal?) continuou sozinho. Talvez, como ele está desse jeito, sabe-se lá desde quando, os vivos, ou já esqueceram, ou fizeram um pacto silencioso de deixa-lo lá, quieto. Mas é importante que ninguém quebre o acordo, porque se um levar flores ou fazer lavação, ficará feio para os outros, displicentes. Em grandes cemitérios, cidades do além, tal prática seria inviável: difícil agregar muita gente em uma combinação.
Sou meio machadiano, acho. Penso que o local do último repouso pode reter marcas do tempo, indicando uma espécie de velhice natural, que em vida todos temos. O cemitério da colina estava nesse caminho, mas tomou uma injeção de botox.