segunda-feira, 12 de setembro de 2011

Perfil

Sou definido, mas indefinível. Quem você acha que eu sou? Como você me vê? Não é porque agora pareço assim, que assim permanecerei sempre. Não desejo ser compreendido, mas sim acompanhado em todas as nuances.
Contenho o calor do sangue colono nas veias: demonstro preferência por baixas temperaturas e altas filosofias. Isto, contudo, não me impede de balançar ao som do berimbau ou do chocalho. O negro e o índio que um dia escravizei, hoje fazem questão de, paradoxalmente, influenciarem-me em todas as ações.
O alimento nem sempre tem o mesmo sabor. Se hoje como peixe, amanhã vou querer apenas o mar. Assim é. As pessoas, no entanto, têm grande necessidade de que eu assuma um só papel, por precisarem, talvez, de uma referência, um rótulo, uma marca (registrada ou não). Mas estou disposto a incomodar, pois apesar de ter olhos claros, fortes luminosidades não me ofuscam a visão. Além disso, vejo os óculos escuros com bons olhos.
Quero me contradizer e desdizer, visto que minha coerência é feita de microelementos coesivos que se alteram ao sabor mutante do típico sentimento humano. Cada indivíduo procura enxergar-se no outro. E a sociedade tem também seus valores gerais que, como um rolo compressor/repressor, impõe normas de conduta que enquadram todos em um padrão de normalidade. Pretendo, conforme for, algumas esquisitices, como misturar doce com salgado, vermelho com laranjado, sorvete com melado.
Às vezes (ab) uso do trivial: rotina, cabelo cortado, sapatos limpos, dentes escovados, grama aparada. A vida é uma disparidade complicada. Gostaria até de continuar refletindo sobre essas questões, que dizem respeito a mim, você e os outros. Entretanto os perfis que traçamos jamais alcançam à tridimensionalidade. A intenção, na verdade, era escrever mais, se eu não tivesse mudado de ideia.

quinta-feira, 4 de agosto de 2011

Dedicatórias



Adoro escrever dedicatórias. Antes mesmo de presentear alguém com um livro, já crio mentalmente qual dedicatória combina melhor. Mas o que eu gosto mesmo são as ações exclusivamente interiores, que ficam somente no âmbito da fantasia. Ou seja, lembro de uma pessoa e procuro associar seu perfil a um livro. Em seguida penso em algo para escrever na primeira página. Acontece também, mais raramente, de eu simplesmente me deparar com uma obra qualquer e imaginar que dedicatória ela mereceria.
Tenho um tio que é fascinado por coisas que a maioria considera fúteis. Outro dia ele contou que está esperando pelas férias para poder se dedicar ao estudo dos relógios: sua história, como funciona etc. Logo, imaginei-me passeando por uma livraria quando, por acaso, encontro um belo volume que trata justamente do referido assunto. Cuidadosamente, retiro o objeto da alta prateleira, levo até o balcão onde uma simpática senhorita está a minha espera para fazer a cobrança e, com toda a excitação do mundo, pego a caneta. Citando Mário Quintana, escrevo assim: “O tempo é um ponto de vista do relógio.” Não sei se ficaria bom, mas como eu disse anteriormente, fazer dedicatórias é uma coisa que me agrada, porém, isso não significa que eu o faça bem.
Em uma outra ocasião, enquanto relia A Chave do Tamanho, do Lobato, descobri como o livro abre possibilidades para fazer ótimas dedicatórias. Por exemplo: “Se você estivesse na Casa das Chaves, qual chave você desligaria?” Ou então: “Que esta história abra muitas portas em sua vida”. Ou ainda, caso o presenteado fosse uma namorada: “Você é a chave da minha felicidade”. Tudo bem, são três frases piegas, entretanto, convenhamos que ninguém vai ficar meia hora tentando decifrar palavras altamente filosóficas no momento em que ganha um presente.
No ano passado, participei de um amigo oculto em que todos os participantes presentearam-se com livros de sebo. Gostei da ideia e saí para cumprir minha parte. A tarefa de associar uma pessoa o um objeto nunca é fácil, por isso foram necessárias horas de procura. Por fim, acabei escolhendo Dom Quixote, numa edição antiga e muito bonita. No entanto o que chamou minha atenção na obra foi que ela já vinha uma dedicatória, datada de 1970. Ela dizia o seguinte: “Alberto, desculpe, mas não posso mais ser seu Sancho Pança. Nossos caminhos, agora, são paralelos. Adeus, Marta”. Achei fantástico. Até recorri, em vão, para a minha velha imaginação a fim de criar algo que complementasse ou mudasse a decisão da Marta. Decidi que o melhor era deixar assim, mesmo porque o presente ficaria bem mais autêntico.
Há anos alimento uma ideia que gostaria de lançar às editoras: fazer um livro só com dedicatórias.  Talvez, buscando um lucro maior, os autores podiam ser famosos. Não sei como se daria a coleta de material – o processo deve ser complicado. Quem sabe isso até já tenha sido feito. Contudo, contribuo aqui para a valorização da dedicatória como, quem sabe, um novo estilo literário que possa surgir.




sexta-feira, 15 de julho de 2011

sexta-feira, 8 de julho de 2011

O reacionário

Por favor, não leias! Este é o conselho que te dou. Já li coisa que não devia. E me arrependo. Tudo bem que isso foi em uma época em que não havia alguém que me conduzisse para o que é bom. Foi a duras penas que consegui, aos 18, chegar a Machado. A maturidade, finalmente, adquirida.
Tu, leitora, no entanto, tens uma vantagem: esta humilde e reacionária pessoa que escreve. Não permitirei que percas horas preciosas com simples aglomerados de papel debaixo do braço, andando para lá e para cá. O livro não foi inventado para isso. Vejo populares, sentado nos cafés, com publicações da moda, inocentemente, procurando mostrar certa erudição. A intenção do livro nunca é de ser levado – apesar da sua praticidade – e sim de levar.
O que é ruim não (se) leva a lugar algum. Por isso, leitora, evita histórias que deixam um suspense para ser desvendado no final. Uma amiga leu, começou a contar-te o enredo e aí tu disseste: “Ai, não contes o fim, tá?” A questão é que, se uma trama é bem engendrada, o fim pouco interessa. Inclusive, às vezes ficamos a tal ponto absorvidos com o durante de uma leitura que não queremos que o depois chegue logo. Na literatura, o fim não justifica os meios.
Procura, então, um livro que te surpreenda com palavras. Sem que tu esperes, aparece, por exemplo, um “teadorar”. Com angústia tu descobres que tal verbo não existe, mesmo com toda a força de teu Aurélio. Se tu, de repente, então, sentires que o chão te escapa, podes ficar feliz, pois o desequilíbrio é um passo importante para quem deseja ser bom leitor. Os eternamente equilibrados têm menos possibilidades de enxergar o mundo de posições alternativas: laterais, invertidas, aéreas.
Não leias, enfim! E se este recado chegou tarde para ti, tens ainda uma saída, ainda que pequena e distante. Corre! Foge dos livros desesperadamente, sem olhar para trás. Eles talvez te perseguirão por um tempo. Baterão a tua porta, chamar-te-ão no supermercado, farão ligações perturbadoras. Atende somente os que não disserem verdade. Leitura é dúvida.

quinta-feira, 30 de junho de 2011

Mim

Descobri que Arnaldo Antunes escreveu a letra de “Beija Eu”, a qual foi projetada na voz de Marisa Monte. O ex-titã se inspirou na fala de seu filho, que, sabiamente, fugia da norma culta para expressar a vontade de ser bem quisto. Me parece difícil pedir algo tão primitivamente subjetivo, preocupando-se com regras. Somente as crianças são capazes de tamanha espontaneidade, pois sua sinceridade é por demais profunda e só consegue enxergar e demonstrar a essência das coisas.
Minha filha, até alguns anos atrás, usava o “mim” em várias frases. Perguntava, por exemplo, “Tu ajuda em mim?” e “Tu brinca com mim?”. Penso que não pode haver nada mais essencial e sublime do que isso. Além do mais, é de grande sonoridade. Experimente comparar “Tu brinca com mim?” com “Tu brinca comigo?”. O “comigo” é muito mais seco do que o “mim”, cuja nasalização faz propagar e ecoar o som.
Mas a musicalidade não é o mais importante nos barbarismos da minha filha. O trunfo maior da sua subversão gramatical é a forma como ela consegue ser plural em significados. Perguntar “Tu ajuda em mim?” é como querer saber se o interlocutor pode, não só ajudar você, mas também entrar na sua alma e comungar dos seus anseios/receios. O “mim” possibilita um passeio pelos sentidos, oblíquos ou não.
Alguns adultos infantis, não suportando ouvir as colocações fora de ordem das crianças, corrigem implacavelmente. É o mesmo que acontece com alunos que são podados por professores quando escrevem, por exemplo, uma composição. Os pequenos, assim como na fala, escrevem com uma linearidade que lhes é própria. As ideias parecem não fazer sentido. E não fazem mesmo, para quem está habituado a um mundo cartesianamente chato.
Eu amo “mim”. E amo as crianças também. Pena que a licença poética delas dura tão pouco: rapidamente (des) aprendem o correto. É como ouvir a música “Beija Eu” em meio a uma aula de Reforma Ortográfica. Um lampejo de liberdade ante o mundo de regras que estão em volta.

quarta-feira, 22 de junho de 2011

Midnight in Paris



Confesso que li uma crítica do filme antes de assisti-lo e era positiva, gentil, comparando-o, inclusive, com The Purple Rose of Cairo, um dos meus filmes preferidos, aliás. Mas não gosto de tudo o que o Woody Allen faz: às vezes, acho-o tagarela demais. Cinema é imagem. Para o Midnight in Paris fui com boa impressão e bom pressentimento. Acho que no momento certo, também. Só sei que tudo parece ter convergido para que eu não perdesse um segundo da trama. Apreciei deveras!
Imagem e palavra dialogam perfeitamente na película; conduzem o espectador/leitor por um cenário espetacular (o que de mais iluminado a “cidade luz” tem) e por falas na medida certa. Teria o autor/diretor encontrado a fórmula? Seria ele como o bom vinho francês, curtido e saboroso?
É preciso muita sensibilidade para alcançar a alma de um lugar. Apesar de Paris não ser exatamente uma cidade difícil de se gostar, Woody enxerga nuances que estão expressas no personagem principal: o sonhador Gil Spender, um aspirante a romancista que pretende largar a, segundo ele, futilidade da vida americana para viver (em) Paris. Ele passa a acreditar que lá seu texto pode melhorar, visto que tantos artistas importantes já passaram por aquele palco e, para o mundo, nunca passaram.
Gil, então, à meia noite, diariamente (ou noturnamente?), embarca em uma viagem fantástica para a época das pessoas que sempre admirou. Convive com Picasso, Hemingway, T. S. Eliot e muitos outros. O personagem vai, assim, fundo no desejo de mudança. A evasão, tão ordinária na vida nossa, sempre tão insuficiente...
Ao sair do cinema, tive que encarar a realidade prosaica. Entretanto, quando olhei no relógio, tive um sobressalto: meia-noite. O que me esperava? Um bom vinho chileno, Edith Piaf e esse texto.