sábado, 14 de março de 2015

Carro

Minha não-história com carros começou cedo. Nas brincadeiras com meus primos, eu não achava a mínima graça em brincar de carrinho. Meu lance era outro: encantava-me a tríada pipa, futebol e bolinhas de gude, com eventuais incursões em trilhas de bicicleta e outras aventuras.
Cresci e tive carro, sim. Aderi a uma cultura retrógrada brasileira, que empurra goela abaixo a obrigação de todo homem andar motorizado. Em verdade, admito a importância da possibilidade de me locomover rapidamente de um local ao outro, sem precisar depender de transporte público – uma forma de mobilidade ainda deficitária e, muitas vezes, defasada –, em muitos momentos da minha vida. Nos tempos de universidade, quando era preciso estudar e trabalhar em vários lugares ao mesmo tempo, o bom mesmo teria sido o teletransporte, mas o carro já resolveu.
Ainda hoje, me locomovo em quatro rodas. O pensamento, entretanto, caminha, usa metrô, trem, ônibus. Sempre sonho com o dia em que não estarei mais à mercê de engarrafamentos, acidentes, irritações/brigas/xingamentos, mecânicos, borracheiros, flanelinhas, impostos, eletricistas, sinais de trânsito, estacionamentos, seguradoras, concessionárias. Uma vez li um texto que dizia que, quando compramos um carro todo mundo sai ganhando, menos quem compra. Pode até parecer pouco consciente pensar assim, tendo em vista que o mercado precisa de consumidores. Por outro lado, o que o consumo tem trazido ao mundo?
Além de tudo, não acho chique dirigir. Não é à toa que os ricos contratam motoristas. Sem contar que é uma atividade limitante, em diversos sentidos. Quando se anda, é possível enxergar as coisas em volta, seguir a borboleta amarela do Rubem Braga. Já devorei livros inteiros ao balanço enjoadinho do ônibus. Tudo isso é mais lento? Pode ser. E se eu disser que já levei oito horas para fazer 100 quilômetros? Prefiro a outra lentidão. Uma que não incomoda, porque os sentimentos estão em coisas outras.
Lembro de vezes em que o ponto final de um texto veio depois do ponto final do ônibus: voltei andando, para não precisar voltar o texto.

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